Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

O caminho para Berenice

Já faz muitos anos desde o acidente com Berenice. Quase dez, desde que o ônibus em que viajava colidiu e ela perdeu os movimentos das pernas. Eu e Berenice havíamos planejado férias, iríamos fugir de tudo e todos, pegar uma trilha no mato e passarmos o mês trancados numa barraca sem roupas, como quando éramos adolescentes.

Ainda hoje sei que vivo em suspensão, preso à missão que eu mesmo me encarregara, de fazer com que Berenice voltasse a andar. Meus sodales aconselhavam em vão que eu esquecesse, deixasse que a família dela tomasse conta e partisse para outra, que eu era jovem e amor eterno era coisa que não existia. Mas eles não podiam entender, jamais conseguiriam, que a vida toda eu planejara aquelas férias no mato com Berenice, e eram as férias, não ela, que ainda me mantinha junto à ela.

Até de início consegui empolgá-la. Fiz com que ela sentisse que poderia, de uma hora para outra, acordar curada. Que não era uma fratura na coluna que a manteria presa na cadeira pelo resto da vida. E por muitos anos ela tentou e sofreu e chorou de dor, mas sempre olhava para mim, preso à ela assim como ela vivia presa à cadeira ou às muletas, e em meio ao rosto cansado seu olhar de ternura parecia revigorar em mim a disposição de ajudá-la, e isso a revigorava no esforço de não desistir.

Mas nos últimos anos percebemos que não será possível. Berenice jamais voltará a andar. Embora ainda assim eu cobre dela as sessões diárias de exercício e em meio a um olhar suplicante ela tente ainda, sustentar-se nas pernas, logo tombando. E quando o tombo chega não representa mais a dor da queda, como antes, mas sim o alívio para ela que sabe que depois de muitos tombos a deixarei descansar e retomaremos no dia seguinte. Berenice e eu continuamos tentando dia após dia, embora ela saiba que estamos num beco sem saída, e eu também o saiba. E ambos já compreendemos que a desesperança é compartilhada, mas ainda continuamos tentando porque é a única coisa a se fazer.

A princípio não quis comprar a muleta nem a cadeira, pois estava certo que em pouco tempo não mais seriam necessárias. A esperança é algo que morre aos poucos, e talvez tenha começado a morrer no dia em que aceitei que sairia mais barato se as comprássemos. Daquele dia em diante assistimos quase calados ao declínio constante, uma pequena derrota a cada dia, sem que nada disséssemos, a não ser ocas palavras de consolo mútuo. Ainda assim mesmo quando se perde a esperança não se pára de tentar, pois simplesmente não há nada mais para fazer, nada mais.

E por mais que soubéssemos ambos que todo esforço era inútil, e por mais que Berenice por mil vezes me dissesse que desistisse, que eu ainda era jovem e poderia começar de novo com outra mulher, uma mulher saudável e inteira, eu sempre declinava sua súplica e vinha com outra falsa palavra de apoio e confiança no futuro.

E embora Berenice não sentisse mais nada da cintura para baixo, consentiu que eu ainda transasse com ela, para que ao menos meu sofrimento fosse minorizado. Mas eu percebia sempre que quando eu começava ela escondia o rosto para que eu não visse que chorava. Era horrível ter que saciar meus instintos animais dessa forma, num corpo insensível, semelhante a um cadáver, mas eu justificava a mim mesmo dizendo que dessa forma ela sentiria que minha infelicidade seria menor e isso a contentaria. Mas a consciência do choro por vezes me fazia brochar e eu fingia orgasmos para acabar logo sabendo que ela nunca sentiria a diferença mesmo. E às vezes masturbava escondido, quase chorando com o rebaixamento de minhas esperanças.

A muleta no canto hoje já apresenta boas partes enferrujadas. O sinal de que os anos se passaram enquanto minha vida aguardava em suspensão por aquele acampamento nas férias, para que pudéssemos finalmente retomar de onde havíamos parado, apagando todo esse espaço de tempo intermediário. A muleta, se bem usada, pode se tornar uma arma perigosa, fatal. Pode em uma única pancada abrir um crânio, derramando a massa encefálica e terminando uma vida para sempre. Peguei a muleta e fui ao quarto de Berenice para acordá-la e tentarmos mais uma última vez. Hoje, de qualquer forma, o sofrimento acaba.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski